Luiz Fernando Valladão Nogueira
Art. 1593. “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
Conforme é cediço, o parentesco é natural ou consanguíneo, caso decorra do mesmo tronco ancestral, podendo ser na linha reta e na colateral. Também pode ser por afinidade, como acontece no caso do cônjuge e do companheiro que mantêm parentesco com os parentes do outro. E, por fim, pode ser civil, quando decorrer de adoção, da paternidade socioafetiva ou da inseminação artificial heteróloga.
O artigo ora em análise cuida especificamente do parentesco natural ou consaguíneo e do civil.
Apesar de críticas doutrinárias sobre aparente discriminação estabelecida pelo Código (que teria criado categorias de parentes, olvidando o princípio isonômico constitucional), penso que o maior objetivo do legislador, na verdade, foi o de deixar clara a existência de parentesco que não seja apenas o de origem biológica.
Com efeito, os filhos que são adotados não guardam origem biológica, mas possuem os mesmos direitos que os demais. De igual forma, aqueles que foram reconhecidos como parentes em virtude do longo convívio, apto a gerar afeto indiscutível, também possuem a mesma proteção legal. E o mesmo se diga sobre aqueles que, por conta da inseminação artificial heteróloga, não foram concebidos com a participação do pai ou da mãe, mas foram criados por eles.
A inserção destas outras hipóteses de parentesco acolheu clara orientação jurisprudencial e mesmo constitucional (livre opção do casal – art. 226 § 7º; proibição de discriminação – art. 227 § 6º).
O fato é que, desde o início da vigência do Código Civil, tal compreensão foi assimilada.
A propósito, o enunciado 103 CEJ dispõe que
[…] o código civil reconhece, no art. 1593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade sócioafetiva, fundada na posse de estado de filho.
Ainda na mesma linha, o enunciado 256 do CEJ: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.
A jurisprudência do STJ tem admitido a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica, apenas se essa pretensão for do próprio filho. Ou seja, aquela Corte não tem acolhido a paternidade socioafetiva, se o interesse não é do filho que está a procura de sua ancestralidade, mas do pai registral – e que não é pai biológico – ou de algum sucessor do mesmo. Em outras palavras, o STJ entende que, se for do interesse do filho, deve prevalecer a paternidade biológica, em detrimento da socioafetiva.
A título de ilustração, vale consignar aresto daquela Corte, segundo o qual “nas demandas sobre filiação, não se pode estabelecer regra absoluta que recomende, invariavelmente, a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica. É preciso levar em consideração quem postula o reconhecimento ou a negativa da paternidade, bem como as circunstâncias fáticas de cada caso”. E, adiante, assim sacramentou o precedente:“No contexto da chamada “adoção à brasileira”, quando é o filho quem busca a paternidade biológica, não se lhe pode negar esse direito com fundamento na filiação socioafetiva desenvolvida com o pai registral, sobretudo quando este não contesta o pedido”. (REsp 1256025/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/10/2013, DJe 19/03/2014).
Com a ressalva de que, realmente, há que se observar as especificidades de cada caso, prefiro me posicionar no sentido de que em outras situações também é viável a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica.
Ora, a busca pelas origens é um direito personalíssimo do filho. Todavia, não menos relevantes são as relações estáveis, públicas e sinceras que se formaram, ao curso do tempo, entre pai e filho, sobretudo quando aquele assume, no registro civil, a paternidade deste último. Não me parece, a princípio, merecedora de agasalho judicial a pretensão daquele que, embora criado com carinho por quem não era seu pai biológico, prefere, a certa altura, hostilizar tal relação formal e espontânea, vindo a priorizar outra, de natureza consanguínea.
O princípio da dignidade humana é via de mão dupla. Vale dizer que deve orientar a busca pela ancestralidade, mas também deve servir como bússola para proteger aquele que assumiu os ônus e inconvenientes de criar, orientar e, enfim, promover afeto com relação ao filho socioafetivo.
Enfim, parece-me que a existência de efetiva e concreta paternidade socioafetiva, ainda mais se formalizada pelo registro de nascimento, deve ser fato impeditivo ao direito do filho que ajuíza ação para ver reconhecido o pai biológico.
O tema ainda será definido pelo Supremo Tribunal Federal, haja vista o seu status constitucional. Assim é que, conforme ementa abaixo, já foi reconhecida a repercussão geral da matéria e, espera-se em breve, deverá ser equacionada em definitivo:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. IMPRESCRITIBILIDADE. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO. PATERNIDADE BIOLÓGICA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. CONTROVÉRSIA GRAVITANTE EM TORNO DA PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA EM DETRIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. ART. 226, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PLENÁRIO VIRTUAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. (ARE 692186 RG, Relator: Min. LUIZ FUX, julgado em 29/11/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-034 DIVULG 20-02-2013 PUBLIC 21-02-2013 ).
O certo é que, dando concretude a princípios constitucionais, o Código Civil, em boa hora, colocou em evidência a circunstância de que a paternidade e a maternidade podem ter origem fora da mera vinculação biológica.
AUTOR:
NOGUEIRA, Luiz Fernando Valladão. Advogado; Professor de Direito Processual Civil; Procurador do Município de Belo Horizonte.