O Projeto do Novo CPC e a Tutela de Evidência

Luiz Fernando Valladão Nogueira

1) O Sistema Atual – Cautelares e Tutelas Antecipadas – A Caminhada Rumo à Efetividade.
A efetividade das decisões judiciais sempre foi uma preocupação a atormentar aqueles que estudam o Direito. E, quando se fala em efetividade, vêm à tona as medidas de urgência!
Com efeito, o Código de Processo Civil, antes mesmo das várias reformas que lhe foram impostas e da própria Constituição Federal de 1988, já estabelecia a possibilidade de obtenção imediata e satisfativa do bem de vida perseguido, em sede de liminar, em alguns procedimentos especiais. Assim é que, por exemplo, o Código admitia a proteção possessória, com evidente caráter satisfativo, já no início do trâmite do processo respectivo (art. 928 CPC). De igual forma, a lei que regulava o processo de mandado de segurança (Lei 1.533/51), em seu artigo 7º, previa a hipótese da concessão da ordem, já em caráter liminar.
As medidas cautelares, cujo objetivo é apenas o de assegurar o resultado prático do processo, também já estavam previstas nos arts. 796 e segts do Código de Processo Civil.
Portanto, pode-se afirmar que, antes da Carta Constitucional de 1988, já existiam dispositivos que objetivavam a maior efetividade do processo. Em outras palavras, a busca do processo “justo”.
Aliás, já se percebia a nítida distinção entre as tutelas cautelares e as tutelas antecipadas. As primeiras, previstas nos aludidos arts. 796 e seguintes do Código Processual, objetivavam garantir o resultado prático do processo e não eram satisfativas (o bem de vida perseguido não era alcançado, de imediato). Já as tutelas antecipadas, embora ainda não previstas expressamente no Código àquela época, aconteciam, na prática, por intermédio das liminares em procedimentos especiais, sendo que, nestes casos, havia a plena satisfação com a obtenção do bem de vida.
Eis que, com a Constituição de 1988, houve a previsão de que seriam assegurados a “razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º. inc. LXXVIII). Mais ainda, houve a previsão de garantia de apreciação pelo Poder Judiciário de “lesão”, inclusive quando ocorrer “ameaça a direito” (art. 5º. XXXV CF).
No plano infraconstitucional, notadamente no que toca às tutelas de urgência, houve avanços que se mostravam atentos aos ditames constitucionais.
De fato, com a Lei 8952/94 houve a instituição da tutela antecipada, pela qual se generalizou quanto à possibilidade de a medida de urgência ser satisfativa. Vale dizer que, desde que houvessem, além do perigo de dano ou abuso no direito de defesa, “prova inequívoca” e “verossimilhança da alegação” (art. 273 CPC), já poderia o magistrado “antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial”.
Na linha do que já admitia o chamado Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90 – art. 84 § 3º), a referida Lei 8952/94 inseriu no Código de Processo Civil a antecipação da tutela para os casos de obrigações de fazer ou não fazer (art. 461, § 3º). Em seguida, e por intermédio da Lei 10.444/02, estendeu-se a mesma medida para as ações que tivessem por objeto a “entrega de coisa” (art. 461 A e § 3º CPC).
Disto tudo sobressai que ainda subsiste, na atualidade, uma divisão nas medidas de urgência: tutela antecipada e cautelar, sendo que a primeira tem caráter satisfativo e a segunda visa garantir o resultado prático do processo.
Acontece que os requisitos à concessão das referidas medidas são diferentes, até mesmo porque o alcance da tutela antecipada é mais amplo e eficaz do que o da cautelar.
Sim, para a tutela antecipada é de rigor que haja “prova inequívoca” e “verossimilhança da alegação” (art. 273 CPC), requisitos estes que exigem uma quase certeza de que o pretendente tem razão em seu pleito e será vitorioso ao final. Já para a cautelar, há um rigor menor, na medida em que basta à sua concessão a relevância da fundamentação e o perigo de dano.
De maneira objetiva, lembra Antônio Carlos Marcato[1], ao se referir à tutela antecipada, que “predomina o entendimento de que não se trata de cautelar, pois não se limita a conservar situações para assegurar a efetividade do resultado final, mas implica antecipação do próprio resultado”.
Fredie Didier, Paula Sarno, Rafael Oliveira[2] evidenciam a distinção entre a cautelar e a tutela antecipada:
“Sob essa perspectiva, somente a tutela antecipada pode ser satisfativa e atributiva, quando antecipa provisoriamente a satisfação de uma pretensão cognitiva e/ou executiva, atribuindo bem da vida. Já a tutela cautelar é sempre não-satisfativa e conservativa, pois se limita a assegurar a futura satisfação de uma pretensão cognitiva ou executiva, conservando bem da vida, embora possa ser tutelada antecipadamente.”
Conforme entendimento de José Roberto dos Santos Bedaque[3],
“(…) Distinguem-se, todavia, pelo caráter satisfativo de uma, inexistente na outra. As medidas cautelares exerceriam em nosso sistema apenas a função de assegurar a utilidade do pronunciamento futuro, mas não antecipar seus efeitos materiais, ou seja, aqueles pretendidos pela parte no plano substancial. A diferença fundamental entre ambas residiria, pois, nesse aspecto provisoriamente satisfativo do próprio direito material cuja tutela é pleiteada de forma definitiva, ausente na cautelar e inerente na antecipação.”
O que acontece é que essa dualidade de medidas de urgência, com requisitos e procedimentos distintos, estava a causar embaraços na prestação jurisdicional. É que os requerimentos feitos erroneamente ocasionavam o indeferimento das pretensões, em vista de inadequação formal.
A fim de superar tal obstáculo formal, a Lei 10.444/02 cuidou de trazer o § 7º ao art. 273 CPC, o qual consubstanciou a chamada fungibilidade das medidas de urgência. Em outras palavras, o requerimento que desconsiderasse a dicotomia entre cautelar e tutela de urgência poderia, ainda assim, ser aproveitado, em homenagem à efetividade do processo.
Com efeito, “se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental ao processo ajuizada” (§ 7º art. 273 CPC).
Trata-se, aí, de um grande avanço na efetividade, pois, ao permitir que a cautelar seja deferida, incidentalmente, no próprio processo principal, o legislador acenou com a possibilidade de haver uma desburocratização com a eliminação do processo cautelar autônomo.
Para Luiz Rodrigues Wambier,[4]
(…)
Assim, em casos urgentes, o juiz não pode deixar de conceder a medida simplesmente por reputar que ela não foi requerida pela via que considera cabível. Nessa hipótese, se presentes os requisitos, o juiz tem o dever de conceder a tutela urgente pretendida e, se for o caso, mandar a parte posteriormente adaptar ou corrigir a medida proposta.
O texto do artigo 273 do parágrafo 7º, deixa clara a antes mencionada fungibilidade entre tutela antecipada e tutela cautelar. Diversamente do que pode parecer com uma leitura rápida,a providência de natureza cautelar pode ser postulada ainda que não tenha expressado pleito de antecipação de tutela. Pode ocorrer de o autor não ter pedido antecipação de tutela (até mesmo por eventualmente não lhe interessar tal antecipação), mas ter pedido providência de natureza diversa do provimento final almejado, com os requisitos suficientes para a concessão de medida cautelar. Nessa hipótese, a norma autoriza o pedido (cautelar)em processo de conhecimento. Por outro lado, e embora a regra não o diga expressamente, as razões antes expostas evidenciam que fungibilidade também haverá de ser reconhecida no sentido oposto – ou seja, poderá haver deferimento de tutela antecipada requerida sob a forma de “medida cautelar”.
Já para Antônio Cláudio da Costa Machado, [5]
“Contrariamente ao posicionamento corrente da doutrina que vem vislumbrando com presente dispositivo apenas a fungibilidade do pedido de tutela antecipada, ousamos divergir para afirmar que este §7º significa muito mais que isso, posto que a idéia de Fungibilidade pressupõe o equívoco da parte ao solicitar providência antecipatória em vez da natureza cautelar, quando, na verdade, o que o texto sob enfoque permite é que, a partir de agora, se peça naturalmente providência cautelar da mesma forma como se pede antecipação da tutela, vale dizer, independentemente de propositura da ação cautela incidental.(…). O que queremos salientar é que a parte não precisa errar na qualificação jurídica da providência para que o juiz possa conceder-lhe o provimento acautelatório – se a postulação inadequada ocorrer, sem nenhum problema o juiz poderá compreendê-la, à luz da necessidade real da parte, e conceder a cautela, tendo em conta a fungibilidade -, pelo contrário, pode deliberada e conscientemente requere por essa nova forma de tutela cautelar incidental. Para que se alcance toda a potência normativa que este novo §7º proporciona, destarte, basta que se interprete a locução “a título” como “na forma” e aí teremos um resultado exegético verdadeiramente significativo para o processo civil. Atente-se, por derradeiro, para o fato de que essa nova regulamentação introduzida no artigo 273 não representa o desaparecimento do processo cautelar, porquanto as cautelares antecedentes (chamadas preparatórias) permanecem intactas no sistema (art. 796, do CPC), e nem mesmo a morte do processo cautelar incidental, na medida em que o art. 796 referido não foi alterado pala Lei n. 10.444/2002 (e ele fala de procedimento cautelar […] no curso do processo principal”), de sorte que apenas quando o juiz verifique que o requerimento de cautela (art .273, §7º) se encontra bem instruído, não depende de prova oral e não vai gerar tumulto nos autos do processo cognitivo, então, o órgão jurisdicional concede a providência solicitada; caso contrário, o magistrado determina ao requerente que postule a medida acautelatória em sede própria, ajuizando ação cautelar incidental, o que permitirá a ampla discussão de matéria fática e jurídica sem comprometer o andamento do processo principal”.
A jurisprudência assimilou este avanço, permitindo a concessão da tutela de urgência, independente do rótulo dado pela parte, desde que observados os requisitos legais. Vale conferir o seguinte exemplo:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO ORDINÁRIA. LIMINAR. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. TUTELAS DE URGÊNCIA. FUNGIBILIDADE ADMITIDA. REFORMA. O princípio da fungibilidade, consagrado no art. 273, §7º, do CPC, torna possível a concessão de uma medida de urgência no lugar da outra, em atenção à celeridade e economia processual”.[6]
Enfim, no sistema atual, encontramos esta divisão legal entre as tutelas de urgência (cautelares e tutelas antecipadas), havendo, contudo, a admissão de que haja o atendimento do pleito da parte, independente da nomenclatura adotada no requerimento (fungibilidade). E, mais ainda, o procedimento adotado é irrelevante (incidental ou por processo cautelar separado), eis que importa, isto sim, o preenchimento dos requisitos legais à obtenção da proteção judicial.
2) A Proposta do Projeto do CPC – Nova Divisão – Medidas de Urgência:
Tutela de Urgência e Tutela de Evidência.
O projeto do novo Código de Processo Civil, como é notório, está em trâmite no Congresso Nacional, sendo que já foi aprovado pelo Senado Federal.
Desta feita, a proposta é no sentido de eliminar o “processo cautelar”, ao qual é, atualmente, dedicado o Livro III do CPC. A proposta estabelece as “medidas de urgência”, que se dividirão em “tutela de urgência” e “tutela de evidência”, sendo que serão ajuizadas sempre nos mesmos autos do processo principal.
E mais: o projeto, influenciado pela fungibilidade atualmente em vigor, prevê o cabimento dessas medidas, seja em caráter cautelar seja com natureza satisfativa.
Eis o dispositivo do art. 269 do Projeto:
“Art. 269 – A tutela de urgência e a tutela de evidência podem ser requeridas antes ou no curso do processo, sejam essas medidas de natureza satisfativa ou cautelar.
§ 1º São medidas satisfativas as que visam a antecipar ao autor, no todo ou em parte, os efeitos da tutela pretendida.
§ 2º São medidas cautelares as que visam a afastar riscos e assegurar o resultado útil do processo”.
Destarte, poderá ser requerida qualquer das medidas de urgência, sem que haja alteração de procedimento em virtude de sua natureza – satisfativa ou cautelar.
Aliás, o projeto é mais audacioso ainda, ao manter os mesmos requisitos previstos à cautelar para a medida de natureza satisfativa. Sim, em vez de estabelecer um rigor maior para as medidas satisfativas, o projeto manteve para elas o mesmo critério adotado para as cautelares.
De fato, o art. 276 do projeto destaca, sem fazer qualquer distinção entre as medidas de natureza cautelar e as satisfativas, que “a tutela de urgência será concedida quando forem demonstrados elementos que evidenciem a plausibilidade do direito, bem como o risco de dano irreparável ou de difícil reparação”.
Vale lembrar que, neste particular, haverá uma mudança. É que o art. 273 CPC em vigor, ao tratar da tutela antecipada (satisfativa), exige que haja a “prova inequívoca” dos fatos alegados, assim como a “verossimilhança da alegação”. Ora, como é cediço, estes critérios, diferentemente dos adotados para as medidas cautelares, exigem que haja uma quase certeza de que o pretendente tem razão quanto à pretensão principal e, por isto mesmo, é merecedor de sua antecipação.
Pois bem, seguindo adiante, veremos que o projeto traz, efetivamente, um avanço, ao prever a tutela de evidência. A grande diferença entre esta e a tutela de urgência (ambas estão inseridas no gênero medidas de urgência) é que a primeira dispensa o requisito do dano irreparável ou de difícil reparação.
Com efeito, a tutela de urgência exigirá, para ser concedida, o chamado periculum in mora. Já a tutela de evidência, conforme preconiza o art. 278 do projeto, “será concedida, independentemente da demonstração de risco de dano irreparável ou de difícil reparação”.
A concessão da medida pretendida – cautelar ou satisfativa – sem o requisito do periculum in mora representa um avanço no campo da efetividade. Ora, o processo lento, e que só traga o bem de vida perseguido depois de longo tempo, não é justo. O processo justo é aquele que traz a satisfação à parte, ainda a tempo e modo.
3) Ainda a Proposta e as Hipóteses Específicas para a Concessão da
Tutela de Evidência.
Neste cenário de instituição da tutela de evidência, o projeto previu situações específicas em que ela será cabível.
A primeira delas, prevista no inciso I do referido artigo 278, é quando “ficar caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do requerido”.
Na verdade, pode-se dizer que, mesmo no sistema atual, já há a previsão de tutela de evidência, em situações deste jaez, ainda que sob o rótulo de tutela antecipada. Isto porque o art. 273, inc. II, do Código de Processo Civil em vigor, já admite a concessão da tutela antecipada, mesmo que não haja o risco de dano.
Realmente, o requisito de “receio de dano irreparável ou de difícil reparação” está previsto no inciso I daquele artigo, como sendo uma regra geral. Já o inciso II do mesmo artigo dispensa o periculum in mora, desde que “fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu”.
É fácil verificar, pois, que a tutela de evidência em casos tais, na prática, já existe em nosso ordenamento processual.
Vale conferir o tratamento doutrinário atual sobre o tema[7]:
“Já no que tange ao abuso do direito de defesa ou o manifesto intuito protelatório do réu (inciso II do art. 273), o legislador dispensou a necessidade do perigo de dano. Para a caracterização desse requisito, basta a utilização indevida do processo pelo réu para dificultar a prestação da tutela jurisdicional pleiteada, impedindo a efetividade e a celeridade do processo.
O abuso do direito de defesa resta configurado quando o réu pratica atos indevidos dentro do próprio processo, já o manifesto intuito protelatório corresponde ao comportamento do réu fora do processo, mas com ligação direta à relação processual, tal como a ocultação de provas.
Ressalte-se que, de acordo com a finalidade da norma, a concessão da antecipação dos efeitos da tutela nesses casos, somente se justifica se da conduta do réu resultou atraso indevido na entrega da prestação jurisdicional.
Para alguns autores, como Cândido Rangel Dinamarco e Calmon de Passos, pode-se usar como parâmetro, para a identificação dessas situações, o artigo 17 do Código de Processo Civil, que estabelece hipóteses de litigância de má-fé.
Teori Albino Zavascki denominou, para efeitos meramente classificatórios, a hipótese de antecipação de tutela prevista no art. 237, I, como antecipação assecuratória, e a hipótese prevista no art. 273, II, como antecipação punitiva. Em relação a essa última, o Autor faz importante ressalva: “embora não se trate propriamente de uma punição”.”
Para Marcato[8],
“Na situação do inciso II do art. 273, a razão de ser da antecipação é completamente outra, não vinculada ao perigo concreto de dano. Revela a existência de postura assemelhada à litigância de má-fé, já regulada pelos arts. 16 a 18 do Código de Processo Civil.
De fato, a possibilidade de os efeitos serem antecipados em razão do comportamento assumido pelo réu, consistentes em apresentar defesa despida de seriedade, não esta ligada a perigo de dano concreto. Destina-se tão somente a acelerar o resultado do processo, pois o direito afirmado pelo autor é verossímil, circunstância que vem reforçada pela inconsistência dos argumentos utilizados pelo réu em sua resposta. Ou seja, a existência do direito é provável não só pelos argumentos deduzidos pelo autor, como também pelos apresentados na defesa”.
A segunda situação, em que o projeto prevê o cabimento da tutela de evidência, está no inciso II do art. 278: “um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles mostrar-se incontroverso, caso em que a solução será definitiva”.
Aqui também estamos diante de uma hipótese já existente no Código atual. A referência, agora, é ao art. 273, § 6º, do CPC em vigor, segundo o qual “a tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso”.
O que o Código atual prevê, sob a rubrica de tutela antecipada, e está sendo repetido no projeto (agora sob a nomenclatura de tutela de evidência), nada mais é que aproveitar com mais efetividade aquela situação de dispensa de prova sobre fatos incontroversos (art. 334 CPC).
O nosso grande doutrinador Humberto Theodoro Jr.[9] lembra, a respeito do tema, que “a lei 10.444, de 07.05.02, acrescentou o § 6º ao art. 273, que prevê mais um caso de antecipação de tutela. Trata-se de cumulação de pedidos, quando o réu contesta apenas um ou alguns deles, deixando incontroversos outros. Em tal conjuntura, a antecipação se mostra possível, sem necessidade de recorrer-se dos requisitos ordinariamente exigidos (perigo de dano grave, prova inequívoca, etc.)”.
A terceira situação – e aí há verdadeiramente novidade a merecer aplausos – está prevista no inciso III do multicitado art. 278: “a inicial for instruída com prova documental irrefutável do direito alegado pelo autor a que o réu não oponha prova inequívoca”.
São dois requisitos os previstos para a concessão da tutela de evidência, nas hipóteses do inciso III: “prova documental irrefutável do direito alegado” e “que o réu não oponha prova inequívoca”.
A prova documental irrefutável só pode ser compreendida com o mesmo rigor que se trata o chamado direito líquido e certo, requisito à concessão do mandado de segurança.
Realmente, a prova documental irrefutável tem que revelar o direito líquido e certo de quem a está a invocar. E, sabidamente, direito líquido e certo não é aquele que possui complexidade jurídica menor, mas sim aquele que está acobertado por prova documental pré-constituída. Em outras palavras, o autor consegue demonstrar o que alega por meio de prova documental, e sem necessidade de dilação probatória posterior.
O requisito de que o réu não pode opor prova inequívoca àquela prova documental apresentada pelo autor torna a obtenção da tutela de evidência, em casos tais, mais difícil.
O objetivo aí é o de vedar a concessão da tutela de evidência, caso o réu tenha prova clara e convincente que contrarie os fatos argüidos pelo autor.
Neste contexto, pode-se dizer que o réu poderá apresentar esta prova inequívoca, por meio de documentos juntados à contestação. Ou seja, se o autor requerer a tutela de evidência depois da contestação em que o réu apresentar documentos com tamanha força probatória, deverá ser indeferida a medida pretendida.
De igual forma, poderá o autor requerer a tutela de evidência depois do encerramento da fase probatória (já com oitiva de testemunhas e prova pericial, por exemplo), sendo que se o réu tiver conseguido produzir prova inequívoca contrária à pretensão autoral, vez mais deverá ser indeferida a pretensão.
A expressão “prova inequívoca” aqui usada tem o mesmo rigor que a doutrina empresta a ela, quando utilizada como requisito para a concessão da tutela antecipada (art. 273 CPC em vigor). Em outras palavras, se o autor apresenta robusta prova documental (“irrefutável”), mas o réu oferece elementos probatórios que neguem, peremptoriamente, o seu poder de convencimento, a tutela de evidência não poderá ser concedida. Ou, melhor dizendo, o réu terá que comprovar que, a rigor, será vitorioso ao final, razão pela qual ao juiz não convém conceder tutela de evidência ao autor.
Frise-se que o fato do projeto exigir a inexistência de prova inequívoca, oposta pelo réu, não significa que a tutela de evidência só poderá ser concedida depois da contestação.
Ora, em primeiro lugar, é o próprio projeto que admite a concessão da tutela de evidência antecedente ao próprio processo (art. 279), em caráter liminar (arts. 280 a 282, art. 284 I).
Demais disto, há diversas situações em que o magistrado já pode antever que o réu não possui prova inequívoca que contrarie as comprovações feitas pelo autor.
Assim é que, por exemplo, numa ação contra a Administração Pública o cidadão pode estar munido de cópia de processo administrativo, no qual aquela, por meio de seus agentes, já expôs a sua argumentação. E pode ocorrer que os elementos daquele processo administrativo sejam suficientes para evidenciar que o réu carece de argumentos e provas que impeçam a concessão da tutela de evidência.
De igual forma, pode ocorrer que o réu já tenha exposto os seus argumentos e provas, por meio de notificação judicial ou extrajudicial, anterior ao próprio ajuizamento da ação, e de tal forma a facilitar a conclusão do magistrado de que lhe falta prova inequívoca. Ou seja, o Juiz percebe que o autor traz prova documental irrefutável, contra a qual ele já pode deduzir que o réu não tem prova inequívoca.
Há, enfim, a previsão do inciso IV do artigo 278, a permitir a concessão da tutela de evidência, quando “a matéria for unicamente de direito e houver tese firmada em julgamento de recursos repetitivos, em incidente de resolução de demandas repetitivas ou em súmula vinculante”.
Neste caso, por ser a matéria unicamente de direito, supõe-se que os fatos são incontroversos e comprovados de plano. Pode-se dizer que, aqui também, há a exigência do direito líquido e certo!
Destaque-se que a concessão da tutela de evidência, em casos em que a tese de direito já está pacificada por sistemas legais que harmonizam a interpretação do direito (recursos repetitivos, incidente de resolução de demandas repetitivas, e súmulas vinculantes), é um grande avanço na efetividade. Vale lembrar que, nestas hipóteses, será desnecessário o requisito do perigo de dano, circunstância que evidencia o propósito de proteção ao litigante que, com segurança, tem razão em seu pleito, não sendo justo aguardar todo o desfecho do processo para a entrega final do bem de vida.
Por derradeiro, o parágrafo único abarca a possibilidade de concessão de liminar em tutela de evidência, nos casos em que houver “depósito legal ou convencional”, comprovado por “prova documental”.
É oportuna a previsão do projeto, uma vez que, consoante súmula vinculante do STF, não é viável mais a prisão civil do depositário infiel (súmula 25 STF – “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”). Se o afastamento desta medida (prisão) inibe a eficácia na busca do bem entregue em depósito, a previsão do projeto mitiga tal inibição, na medida em que, de forma expressa, prevê a viabilidade de imposição liminar, e sem a necessidade de comprovação de perigo de dano.
4) A Conclusão.
Não há dúvidas de que o processo precisa caminhar rumo à efetividade, de forma menos burocrática possível. A propósito, deve-se enfatizar o óbvio, ou seja, o processo visa permitir a discussão sobre o direito material, não podendo se transformar em ator principal. Logo, ao contrário de criar dificuldades desnecessárias, a norma processual deve acenar para a definição segura e definitiva sobre a lide.
Há, porém, situações de urgência, as quais precisam, nos casos concretos, ser enfrentadas pelo Poder Judiciário.
Durante algum tempo, discutiu-se muito sobre as medidas e procedimentos adequados para esta ou aquela situação de urgência. Hoje, o próprio sistema legal já arrefeceu a intensidade destas discussões, notadamente ao impor a fungibilidade para estas medidas.
O Projeto em curso no Congresso Nacional segue nesta linha, sobretudo ao instituir a chamada tutela de evidência, cujo grande mérito é permitir a concessão da medida (satisfativa ou cautelar) sem o requisito do perigo de dano, naquelas situações em que o pretendente tem, seguramente, razão em sua pretensão.
Deve-se salientar, enfim, que há mudanças e aperfeiçoamentos a serem feitos no projeto, no tocante a este tema, sendo certo que o debate deverá prosseguir. E – espera-se – o debate deverá ocorrer sem açodamentos, sendo importante a participação das entidades jurídicas que pensam o Direito.
[1] Marcato, Antônio Carlos. (Código de Processo Civil Interpretado, 3ª ed, Ed. Atlas, São Paulo, 2008, p. 826).
[2] JR.Fredie Didier, BRAGA Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. 4ª edição, vol.2.Editora Podivm. P.452,456,459,460
[3] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgências (tentativa de sistematização). 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 27).
[4] WAMBIER, Luiz Rodrigues. DE ALMEIDA, Flávio Renato Correia. TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil V.3. 7.Ed, atual, ampliada. Editora: Afiliada, 2006. P.37,38
[5] MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil Interpretado. Ed. Manole. São Paulo. 2006, p.616, 617.
[6] (TJMG, agravo1.0027.09.180940-3/001(1), Des. ALBERTO HENRIQUE, 02/04/2009).
[7] SANTIAGO, Edna Ribeiro. Impossibilidade de concessão da tutela antecipada de ofício nos casos de abuso do direito de defesa ou manifesto intuito protelatório do réu. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2553, 28 jun. 2010. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2011.
[8] MARCATO. Antonio Carlos. Código de Processo Civil Comentado – 3ªedição. Ed. Atlas. São Paulo : 2008 . P. 830
[9] Theodoro Jr., Humberto. Curso de Direito Processual Civil, vol. III, 41ª ed, Ed. Forense, p. 547.
Artigo publicado no livro PROCESSO CIVIL – NOVAS TENDÊNCIAS
Coordenadores: Fernando Gonzaga Jayme, Juliana Cordeiro de Faria e Maria Terra Lauar