Luiz Fernando Valladão Nogueira
Lucas Valladão Nogueira Fonseca
- Introdução
O presente trabalho tem como objetivo estudar, de forma bastante objetiva, a sistemática da competência concorrente criada pela constituição em assuntos relacionados ao Direito Urbanístico. Analisando as disposições contidas no art. 24, I e seus parágrafos e também do artigo 30, I, II e VIII todos da Constituição Federal, verificar-se-á que não há dúvidas de que todos os entes da federação têm competência quando a matéria é Direito Urbanístico.
Nesse contexto, passar-se-á a analisar que pelas características próprias das normas urbanísticas e por ser o ente municipal o mais próximo do cidadão e do meio ambiente artificial (urbano) em que ele vive, aos Municípios foi conferida a atribuição, tanto pela Constituição como pela legislação infraconstitucional, de estabelecer de forma direta e primordial as regras urbanísticas mais específicas e imprescindíveis para o bom convívio humano nas cidades.
Dessa forma, ficando clara a importância da atuação municipal no estabelecimento das normas de Direito Urbanístico, comentar-se-á sobre duas situações específicas previstas pela lei federal do parcelamento do solo, nas quais a atuação do ente municipal, em respeito a um interesse regional, deve dar espaço à atuação do Estado-membro.
Assim, o presente artigo objetiva chamar a atenção para o fato de que dentro da competência concorrente, em regra, cabe aos municípios criar as normas e critérios urbanísticos mais específicos, havendo, porém, duas situações peculiares em que o Estado-membro coloca-se como ente responsável por descer às minúcias na regulamentação das atividades urbanísticas, sem que haja ofensa à autonomia municipal. - Competência Concorrente em Direito Urbanístico e a Preponderância da Atuação do Ente Municipal.
Impõe-se, antes de tudo, traçar breves linhas sobre o que se entende por direito urbanístico, e o que ele abrange.
Enquanto ciência, o Direito Urbanístico é um braço do Direito Público que tem por cerne estudar e apresentar as normas e princípios reguladores da atividade urbanística. De outro lado, enquanto direito objetivo, considera-se o Direito Urbanístico como o aglomerado de normas jurídicas reguladoras da atividade do Poder Público destinado a ordenar os espaços habitáveis, ou seja, conjunto de normas jurídicas reguladoras da atividade urbanística.
Mas e o que seria atividade urbanística? É tudo aquilo que se relaciona com planejamento urbanístico, ordenação do solo, ordenação urbanística de área de interesse especial, ordenação urbanística da atividade edilícia e instrumentos de intervenção urbanística.
Ou seja, o direito urbanístico é o conjunto de normas que visa organizar o espaço urbano, de modo a criar regras para que o meio urbano se desenvolva de forma ordenada.
Dito isso, indo adiante no estudo da competência em matéria urbanística, é cediço que não há grande discussão quanto à afirmação de que a competência para tal assunto – direito urbanístico – é aquela denominada como concorrente.
Sim, estabelece, expressamente, o art. 24 da Constituição Federal que compete concorrentemente à União, aos Estados-membros e ao Distrito Federal legislar sobre Direito Urbanístico.
O mencionado artigo 24/CF, então, confere uma verdadeira repartição vertical de competências, em que a União institui normas gerais e os Estados e o Distrito Federal normas específicas sobre as mesmas matérias.
Isto é, na sistemática constitucional de competência concorrente, como é o caso das matérias afetas ao direito urbanístico, cabe à União criar normas gerais, aos Estados suplementá-las (suplementar completando – art. 24, §2º ou suplementar criando – art. 24, §3º) e, de igual forma, aos Municípios.
De fato, embora os Municípios não estejam presentes no caput do art. 24/CF, eles estão presentes no art. 30, II da CF, onde o constituinte conferiu a tal ente a competência suplementar para legislar, no que couber, sobre tudo aquilo que a União e o Estado legislam.
Nesse sentido, a conjugação da expressão “no que couber” e a sistemática da competência concorrente traçada pelo constituinte transmite a ideia de que o município pode (e deve) legislar sobre direito urbanístico (art. 24, I) desde que respeitado o limite do interesse local (art. 30, I e II).
Aliás, especificamente quanto à promoção do ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, que estão expressamente dispostos no art. 30, VIII da CF como atribuição dos Municípios, novamente a Constituição utiliza a expressão “no que couber”, o que se pode interpretar como desde que esteja presente o interesse local.
Com efeito, não há dúvida que a sistemática de distribuição de competência em matéria urbanística privilegia a predominância de interesses. Isto é, quando o assunto é Direito Urbanístico a Constituição de 1988 distribuiu a competência de acordo com o critério da predominância de interesses, restando, então, nas mãos dos municípios a competência para legislar sobre assuntos locais.
No entanto, esta expressão é bastante abrangente, não havendo uma definição clara sobre o que pode ser considerado como “assunto local”.
Interessante é que na tentativa de esmiuçar o conceito de normas gerais, Adilson Abreu Dallari acaba dando a entender sobre o que seriam as normas locais. Veja-se:
“Não é norma geral aquela que corresponde a uma especificação, a um detalhamento. Portanto, norma geral é aquela que cuida de determinada matéria de maneira ampla. Norma geral é aquela que comporta uma aplicação uniforme pela União, Estado e Municípios; norma geral é aquela que não é completa em si mesma, mas exige uma complementação. Existem, portanto, para a identificação do que seja norma geral, algumas pistas, alguns indicadores.”
De seu turno, Celso Antônio Bandeira de Mello, de forma mais direta, qualifica as normas sobre “assuntos locais” da seguinte forma:
“que se encartam apenas na órbita própria das circunscrições menores – e em qualquer delas, indistintamente -, por dizerem respeito a assuntos tipologicamente concernentes ao menor dos âmbitos geográficos em que se repartem as competências normativas. Bem por isto, são pertinentes a todo e qualquer Município, já que atinam a uma categoria de interesses que é, em sua generalidade, de natureza local.”
Observe-se que não obstante a dificuldade em delimitar o que são normas gerais e normas locais, esta última pode ser entendida como aquela relativa a interesses restritos a uma pequena porção geográfica, que não ultrapassam os limites territoriais nem mesmo institucionais de um município.
Neste contexto, quando o assunto é Direito Urbanístico, surge uma interessante peculiaridade, no sentido de que as normas que regulam esta matéria têm uma natureza preponderantemente local.
Isso porque é no município que efetivamente tudo acontece, mormente quanto às matérias relacionadas ao meio ambiente artificial compreendido como “espaço urbano construído, consistente no conjunto de edificações (chamado de espaço urbano fechado), e pelos equipamentos públicos (especo urbano aberto).”
Sobre isto, José Afonso da Silva tem a seguinte opinião:
“Em verdade, as normas urbanísticas municipais são as mais características, porque é nos Municípios que se manifesta a atividade urbanística na sua forma mais concreta e dinâmica. Por isso, a competência da União e do Estado esbarra na competência própria que a Constituição reservou aos Municípios, embora estes tenham, por outro lado, que conformar sua atuação urbanística aos ditames, diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento urbano estabelecidos pela União e às regras genéricas de coordenação expedidas pelo Estado.”
Ora, é o município que detém conhecimento de causa específico a respeito das particularidades do seu meio ambiente artificial e, por isso, pode com maior eficiência delimitar as normas de Direito Urbanístico.
E isto, sem dúvida, foi considerado pelo constituinte que, ao criar as regras da competência concorrente em matéria de direito urbanístico, colocou nas mãos dos municípios tudo aquilo que for de interesse local (art. 30, I). E mais, ao tratar da política urbana foi ainda mais categórico, deixando claro que o ente municipal tem enorme participação no regramento do meio ambiente artificial.
Sim, o art. 182/CF diz que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.”
E o seu parágrafo 1º clama pela atuação das Câmaras Legislativas, ao estabelecer que “o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.”
Ou seja, até mesmo na tentativa de atingir a efetivação do ideal constitucional da manutenção da sadia qualidade de vida (art. 225/CF) é que o constituinte deu grande importância ao ente municipal quando o assunto é direito urbanístico.
Celso Antônio Pacheco Fiorillo ensina que por ser no município que a vida humana efetivamente ocorre, este ente é que deve agir no estabelecimento das regras mais pormenorizadas acerca do meio ambiente artificial. Confira-se:
“Destarte, ao ratificar o plano diretor como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, fortalece a Lei Complementar a atuação da Câmara Municipal visando estabelecer exatamente os interesses locais que devem ser legislados não só em face das relações jurídicas que atuam devido à propriedade do solo urbano, como evidentemente em face da tutela jurídica das cidades sustentáveis no âmbito da lei do Meio Ambiente Artificial (art. 2º, I, da Lei n. 10.257/2001).
Repetindo: é no Município que nascemos, trabalhamos, nos relacionamos, ou seja, é nele que vivemos. Não existe interesse local mais importante que os interesses concretamente vinculados à vida dos habitantes das cidades (art. 182 da CF).”
Enfim, está claro que em direito urbanístico prevalece o critério da preponderância do interesse, o que, inexoravelmente, acarreta ao município um papel primordial entre os três entes da federação, de modo que as regras específicas e pormenorizadas relacionadas às atividades urbanísticas ficam a seu cargo.
Nesse contexto, o que se passa a analisar no presente estudo são duas situações específicas já previstas em lei, nas quais o interesse local se encolhe em razão do surgimento de um interesse regional, o qual justifica a ampla e ilimitada atuação dos Estados-Membros na criação das normas urbanísticas mais pormenorizadas, sem que haja ofensa à autonomia municipal.
- Exceções à regra em que prevalecem as normas Estaduais
Acompanhando tudo que foi dito acima quanto à importância de dar aos municípios amplos poderes em assuntos urbanísticos, no âmbito infraconstitucional, os dispositivos da lei federal 6.766/79 estabelecem que, em regra, o ente responsável para avaliar e aprovar o parcelamento do solo (instrumento do Direito Urbanístico) é o Município.
Confira-se:
“Art. 6º. Antes da elaboração do projeto de loteamento, o interessado deverá solicitar à Prefeitura Municipal, ou ao Distrito Federal quando for o caso, que defina as diretrizes para o uso do solo, traçado dos lotes, do sistema viário, dos espaços livres e das áreas reservadas para equipamento urbano e comunitário, apresentando, para este fim, requerimento e planta do imóvel contendo, pelo menos:
I – as divisas da gleba a ser loteada;
II – as curvas de nível à distância adequada, quando exigidas por lei estadual ou municipal;
III – a localização dos cursos d’água, bosques e construções existentes;
IV – a indicação dos arruamentos contíguos a todo o perímetro, a localização das vias de comunicação, das áreas livres, dos equipamentos urbanos e comunitários existentes no local ou em suas adjacências, com as respectivas distâncias da área a ser loteada;
V – o tipo de uso predominante a que o loteamento se destina;
VI – as características, dimensões e localização das zonas de uso contíguas.”
Art. 7º. A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, indicará, nas plantas apresentadas junto com o requerimento, de acordo com as diretrizes de planejamento estadual e municipal:
I – as ruas ou estradas existentes ou projetada, que compõem o sistema viário da cidade e do município, relacionadas com o loteamento pretendido e a serem respeitadas;
II – o traçado básico do sistema viário principal;
III – a localização aproximada dos terrenos destinados a equipamento urbano e comunitário e das áreas livres de uso público;
IV – as faixas sanitárias do terreno necessárias ao escoamento das águas pluviais e as faixas não edificáveis;
V – a zona ou zonas de uso predominante da área, com indicação dos usos compatíveis.
“Art. 12. O projeto de loteamento e desmembramento deverá ser aprovado pela Prefeitura Municipal, ou pelo Distrito Federal quando for o caso, a quem compete também a fixação das diretrizes a que aludem os arts. 6º e 7º desta Lei, salvo a exceção prevista no artigo seguinte.
Veja-se, então, que o responsável por disciplinar e aprovar os projetos de parcelamento do solo são as Prefeituras Municipais. Ocorre que a mesma legislação previu que não obstante a aprovação do projeto ficar a cargo das Prefeituras, os Estados podem disciplinar, por meio de decreto, a aprovação de loteamentos e desmembramentos pelos municípios, em duas situações peculiares.
Art. 13. Aos Estados caberá disciplinar a aprovação pelos Municípios de loteamentos e desmembramentos nas seguintes condições:
I – quando localizados em áreas de interesse especial, tais como as de proteção aos mananciais ou ao patrimônio cultural, histórico, paisagístico e arqueológico, assim definidas por legislação estadual ou federal;
Il – quando o loteamento ou desmembramento localizar-se em área limítrofe do município, ou que pertença a mais de um município, nas regiões metropolitanas ou em aglomerações urbanas, definidas em lei estadual ou federal;
(…)
Art. 15. Os Estados estabelecerão, por decreto, as normas a que deverão submeter-se os projetos de loteamento e desmembramento nas áreas previstas no art. 13, observadas as disposições desta Lei.
Isto é, nas situações específicas elencadas pelo art. 13 da Lei 6766/79, cabe ao Estado-membro intervir de modo a disciplinar, por decreto, o parcelamento do solo, restando às prefeituras a aprovação do projeto, observando as diretrizes estaduais.
3.1 Área de Interesse Especial
Sim, a lei federal 6766/79 dispõe, em seu artigo 13, inciso I, que cabe ao Estado disciplinar sobre a aprovação de projetos de loteamentos situados em áreas de interesse especial.
Entretanto, para uma determinada área se adequar ao inciso I do art. 13 da Lei Federal – área de interesse especial -, é imprescindível que o Estado, por meio de decreto, defina-a como tal, nos termos do art. 14 da Lei Federal 6766/79 .
Nesse sentido, em sendo o caso, deve o Estado posicionar-se ativamente, estabelecendo as regras de Direito Urbanístico na área declarada de interesse especial, para que o desenvolvimento se dê de forma equilibrada e em sintonia com as interesses regionais.
E não há que se falar que a intervenção ampla do Estado nesta situação ensejaria violação à autonomia municipal.
Com efeito, como já apontado no item acima, o art. 30, VIII da CF dispõe especificamente sobre o planejamento do solo, de modo a encarregar o município a promovê-lo. Acontece que neste mesmo inciso foi inserida a expressão “no que couber”, justamente para que, em situações específicas, o município perceba que não lhe cabe tratar sobre o assunto e deixe para o Estado a regulamentação do ordenamento do solo nas áreas, por exemplo, em que ele declarou como de interesse especial.
De fato, se o Estado declara, por decreto, uma área como de interesse especial, significa, certamente, que a urbanização daquele local está relacionada diretamente aos seus interesses, de modo que as normas sobre o parcelamento, uso e ocupação deste solo passam a possuir um caráter muito mais abrangente, extrapolando o que se entende por “assunto local”.
Ou seja, o interesse especial, devidamente atribuído à determinada área pelo Estado, é a justificativa criada pela lei para que a competência municipal dê lugar à intervenção do Estado, sem que haja qualquer ofensa à autonomia municipal.
Dessa forma, neste caso a competência legislativa do Estado-membro para regulamentar sobre matéria urbanística é ampla e irrestrita, podendo adentrar em regulamentações pormenorizadas, que, em regra caberiam aos municípios, para que a urbanização ocorra da forma mais equilibrada possível.
3.2 Região Metropolitana
Além da hipótese acima, há também ampla intervenção do Estado-membro em assuntos urbanísticos nas situações elencadas no inciso II do art. 13 da lei federal 6766/79. Isto é, quando a área a ser parcelada for limítrofe do município, ou pertencer a mais de um município nas regiões metropolitanas ou em aglomerações urbanas, definidas em lei estadual ou federal.
A propósito disso, deve-se dizer que as zonas metropolitanas, como se sabe, surgem do fenômeno geográfico denominado conurbação, ou seja, da “existência de núcleos urbanos contíguos, contínuos ou não, subordinados a mais de um Município, sob a influência de um Município-polo.”
A Constituição Federal, inclusive, faz menção a tal fenômeno em seu artigo 25, §3º da Constituição Federal , ao estabelecer que é do Estado-membro a competência para instituir regiões metropolitanas, com o objetivo de “integrar a organização, o planejamento e a execução das funções públicas de interesse comum”.
Dessa forma, com a instituição de determinada zona metropolitana, simples funções públicas que, anteriormente, não ultrapassavam os limites de um município, passam a assumir conotação regional, ou seja, transformam-se em serviços públicos que vão além do interesse local.
José Afonso da Silva, sobre a expressão “funções públicas de interesse comum” ensina que
“se em um núcleo urbano isolado os serviços de transportes, sistema viário, saneamento básico, uso do solo, produção e distribuição de gás combustível canalizado, aproveitamento dos recursos hídricos e controle de poluição ambiental, planejamento integrado do desenvolvimento econômico e social, entre outros, caracterizam serviços locais de peculiar interesse municipal e hão de ser prestados pelo respectivo Município, em uma área ou região metropolitana eles desbordam dessa caracterização, porque ultrapassam o interesse puramente local e municipal, e incluem-se entre o interesse comum a todos, e, assim, hão de conceituar-se como de interesse metropolitano.”
As funções públicas de interesse comum, então, nada mais são que serviços públicos, que de repercussão local passam a possuir abrangência regional.
Nesse passo, tendo o Estado-membro, adequadamente, por lei complementar, instituído a zona metropolitana, passa a caber a ele organizar, planejar e executar as funções públicas de interesse comum, entre elas o uso do solo metropolitano.
E isto também não enseja, de forma alguma, ofensa à autonomia municipal.
Isso porque, assim como na hipótese tratada acima, essas situações são excepcionais, que justificam a intervenção do Estado nos assuntos urbanísticos mais específicos, sem afrontar a distribuição de competências feita pela Constituição Federal.
A doutrina especializada, sobre isto, ensina o seguinte:
“nesses casos, ou seja, nos chamados planos urbanísticos especiais, os Estados podem expedir normas urbanísticas específicas, sem que se possa falar em violação à autonomia municipal(…)”
“os Estados-membros podem cuidar da matéria quando ela se referir, por exemplo, às áreas de interesse especial, aos loteamentos localizados em áreas limítrofes do município ou ainda às áreas superiores a 1.000.000m². Tratam-se todas elas de situações excepcionais nas quais a interferência dos Estados-membros, mesmo direta e concreta (intraurbana), se justifica.”
Acrescenta, ainda, o conceituado doutrinador Toshio Mukai que
“em todas essas hipóteses justifica-se a anuência do Estado, pois nelas está implícito o interesse supramunicipal ou regional de ordem urbanística, que, evidentemente, está a requerer a legislação estadual apropriada para evitar ou minimizar a conurbação excessiva, a densificação caótica, a desarmonia nas urbanizações indesejáveis.”
De fato, a autonomia municipal para promover o ordenamento territorial, conferida no art. 30, VIII da CF, não é absoluta. Como já exposto acima, a expressão “no que couber” traz à tona o raciocínio do constituinte, no sentido de que há exceções, como o caso das zonas metropolitanas, que cabe ao Estado disciplinar acerca da matéria.
E mais, que os Estados, nestes casos, não ficam adstritos a eventual norma municipal. Com efeito, nestas situações em que prevalece um interesse regional, a competência do Estado é ampla e ilimitada não havendo que se falar em subordinação às normas municipais.
Há na doutrina afirmações nesse sentido. Confira-se:
“a autonomia municipal, preceito constitucional, é contingente e dinâmica, não sendo ossatura institucionalizadora inflexível, pois sofre adaptações aos tempos da pós-modernidade estatal, na medida em que os Municípios, autônomos nos termos da Constituição (art. 18), têm pela mesma Constituição condicionada e limitada essa mesma autonomia, como se destaca no fenômeno regional. Pode assim o Estado, pelo Poder Legislativo, criar órgãos regionais com funções normativas e executivas, obrigando os Municípios, porque, a uma, eles se incluem no espaço e ambiência regional, e, a duas, as Regiões Metropolitanas, as aglomerações urbanas e as microrregiões integram o título da organização estatal no texto constitucional, respondendo aos anseios da liberdade, da participação e da solidariedade, atributos da cidadania e pressupostos da regionalização.
O poder judiciário, aliás, já tratou esta questão, quando foi questionada se a intervenção do Estado do Paraná na disciplina do uso do solo de certa região ofenderia a autonomia dos municípios. E o caso ficou decidido da seguinte forma:
EMBARGOS INFRINGENTES – COMINATÓRIA – EDIFICAÇÃO LITORÂNEA – MUNICÍPIO DE GUARATUBA – EMBARGO PELO ESTADO DO PARANÁ – LEGALIDADE – USO DO SOLO URBANO – INTERESSE DA COLETIVIDADE – MANUTENÇÃO DA DECISÃO MAJORITÁRIA. (…) improcedência da alegação de limitação à autonomia constitucional dos municípios, nos termos do seu artigo 30 e a prevalência dos direitos difusos de proteção ao interesse social coletivo ao interesse individual de construir, em observância aos dispositivos constitucionais sobre o tema (art. 23, VI; 24, VI e VII e 225, § 4º). (TJ-PR – EI: 69359202 PR 0069359-2/02, Relator: Ivan Bortoleto, Data de Julgamento: 07/03/2002, III Grupo de Câmaras Cíveis, Data de Publicação: 6088)
Na fundamentação desta decisão, foi dito que “é correto que o Município detém competência legislativa supletiva em matérias pertinentes a interesses locais, mas não se pode, através de interpretação extensiva da regra inscrita no artigo 30, I da Carta Federal, tornar inócuo o artigo 24, pois, desse modo, qualquer lei federal ou estadual cederia perante a supremacia da legislação municipal em questão onde haja não apenas interesse local, mas também regional e/ou nacional.”
Veja-se, então que em razão do fenômeno urbanístico da conurbação , o interesse local diminui e, por conseguinte, encolhe-se também a autonomia municipal. Abre-se, assim, espaço para a proteção do interesse regional, que é feita de forma irrestrita pelo Estado-membro, submetendo os municípios aglomerados a seu regramento.
Tudo isto, naturalmente, com o objetivo de integrar e desenvolver de maneira adequada, equilibrada e igualitária a região.
Por fim, de modo a dirimir qualquer dúvida a respeito do raciocínio aqui apresentado, há importante trabalho doutrinário que cuidou detalhadamente da questão aqui discutida. Confira-se um importante trecho dessa obra:
“Se este dispositivo existe (art. 25, §3º) é porque pretende excepcionar as demais normas constitucionais, inclusive a própria autonomia municipal.
Mas e quais são os limites da competência dos Estados-membros? A interpretação mais coerente, no nosso entender, é a de que se trata de uma competência especial, similar, se não igual, à competência concorrente, com os contornos traçados pela “corrente ampliativa”, ou seja, em que a competência municipal não representa uma ameaça aos Estados-membros.
Aqui, na região metropolitana, a União continua detendo a competência para estabelecer normas gerais, mas os Estados-membros passam a poder não só suplementar a legislação federal, como também, e esta é a diferença, fixar normas específicas de “efeitos diretos e concretos intraurbanas”. Em outras palavras, os Estados-membros podem, observadas as normas gerais federais, “esgotar” a matéria urbanística na região metropolitana, sem se preocupar com o interesse local, que afinal cederá lugar a um interesse metropolitano.”
Ou seja, nas situações excepcionais tratadas pela lei de parcelamento do solo, os Estados-Membros não ficam adstritos à suplementar a legislação federal, respeitando as especificidades da lei municipal. Nestes casos, os Estados, em razão da existência de um interesse regional que extrapola os limites locais de um município, podem criar normas de forma a exaurir a matéria urbanística na região, não havendo que se falar em suposta ofensa ao interesse local.
- Conclusão
Em conclusão, de tudo que foi analisado percebe-se que o Estado pode, com arrimo na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional, em regiões metropolitanas e em áreas de interesse especial, legislar especificamente sobre direito urbanístico, adentrando em critérios específicos que, efetivamente, regulamentam as atividades urbanísticas, como a definição do uso e a ocupação do solo urbano, sem que haja desrespeito à autonomia municipal.
E, dessa forma, havendo um conflito entre normas estaduais e municipais que eventualmente regulamentem as áreas específicas previstas no art. 13 da lei 6766/79, prevalece aquela formulada pelo Estado-membro, para que vigore o critério extraído da Constituição Federal da predominância de interesses.
REFERÊNCIAS
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DA SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro, 7ª edição revista e atualizada, 2007.
Direito Urbanístico: competências legislativas. Revista de Direito Público, n 73.
DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. A competência dos Estados-membros no direito urbanístico: limites da autonomia municipal. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental brasileiro. 14. Edição. São Paulo. Saraiva, 2013.
MELLO, Celso Antonio (Org.) Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba 2: direito administrativo e constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997.
MUKAI, Toshio. Direito Urbanístico-ambiental brasileiro. 2ª Edição. Editora Dialética, 2002.
TEIXEIRA, Ana Carolina Wanderley. Região metropolitana. Belo Horizonte: Fórum, 2005.