Por Luiz Fernando Valladão Nogueira*
A solução dos conflitos pelo judiciário é, no nosso sistema democrático, forma eficiente de busca da paz social. Ou seja, o equacionamento das lides pelo Estado-Juiz traz segurança. Sim, os contendores, a partir da solução encontrada, comportar-se-ão de acordo com o que foi deliberado e, de igual forma, os terceiros e o próprio poder público ajustar-se-ão à realidade advinda de sentença transitada em julgado.
Por exemplo, numa ação possessória entre vizinhos na zona rural, a sentença definitiva importa paz no campo. Os litigantes, a partir daquela decisão derradeira, respeitarão os limites entre as propriedades definidos pelo magistrado, os empregados de ambos se adaptarão a esta realidade e até mesmo a fazenda pública saberá, com mais segurança, de quem cobrar o imposto sobre a propriedade ou posse.
Porém, o poder judiciário produz também decisões já transitadas em julgado e que são injustas. Nesse contexto, é que surge um conflito que merece reflexão, ou seja, até onde o valor segurança jurídica deve prevalecer, inclusive sobre o valor justiça.
Registre-se, de início, que a ação rescisória consubstancia-se em remédio processual hábil a hostilizar decisão transitada em julgado, quando a mesma recair numa das hipóteses exaustivamente elencadas no art. 485 do Código de Processo Civil.
Contudo, é voz corrente na jurisprudência, em consideração à necessária segurança jurídica, que a mera injustiça da decisão é insuficiente para abrir a via da ação rescisória. Essa afirmativa, porém, deve ser analisada com temperamento.
Ora, quando a injustiça vem carregada de forte dose de objetividade, ao ponto de ser considerada extravagante, é viável, sim, a corrigenda por intermédio da ação rescisória.
Assim é que, por exemplo, pode-se afastar a injustiça de decisão transitada em julgado, quando aquele que sucumbiu apura que a prova da qual se valeu o magistrado ou o tribunal no processo originário é falsa (art. 485, inc. VI CPC). E a falsidade da prova, em casos tais, pode ser material e mesmo ideológica, sendo que esta última acontece quando se demonstra, no âmbito da rescisória, que, por exemplo, o laudo pericial contém inverdade ou a prova testemunhal é gritantemente destoante da verdade real.
Também haverá correção de injustiça, por intermédio da rescisória, quando, depois do trânsito em julgado da decisão que lhe foi adversa, a parte obtém documento novo do qual não pôde se valer à época, sendo que este é decisivo (art. 485 VII CPC). Ora, o legislador não quer que a parte traga discussões que já foram superadas pelo trânsito em julgado, porém não pode aceitar – e não aceita – que subsista a injustiça manifesta, quando esta é evidenciada com a apresentação de documento robusto pré-existente, mas que a ele não se teve acesso. Por exemplo, se a parte descobre um contrato, que já existia, mas que a ele não tinha acesso à época do processo originário, pode se valer do mesmo para ajuizar a rescisória, desde que seja fundamental para mudar a decisão rescindenda.
Até mesmo a injustiça decorrente da interpretação da lei pode ser, sim, invocada, no âmbito da rescisória, em casos graves. De fato, o inc. V do art. 485 do CPC admite a rescisória quando há violação à literal disposição de lei. É evidente que a expressão (literal), usada pelo legislador, significa que só haverá procedência da rescisória, caso a decisão rescindenda não tenha optado pela única interpretação que se mostrava cabível no caso concreto. Por estas e por outras, que a súmula 343 STF dispõe que
“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
Todavia, há situações que merecem tratamento diferenciado!
Com efeito, a jurisprudência dos tribunais superiores, relativizando a súmula 343, sustenta que é viável a rescisória, mesmo que controvertida a interpretação sobre o texto legal à época da prolação da decisão rescindenda, em duas situações: a) se o texto tido como violado é de cunho constitucional; b) se, depois, o STJ ou o STF, no exercício de suas atribuições de uniformização da jurisprudência ao redor do direito federal, tenham pacificado a interpretação da norma em sentido contrário ao que foi decidido pela instância ordinária.
A tônica dessa exegese está na premissa de que a efetividade da norma constitucional não pode ser negada, apenas em virtude de anterior divergência interpretativa. De outro lado, a segurança jurídica também impõe a isonomia, no sentido de que situações idênticas, ainda que examinadas em momentos distintos, deverão ter idênticas soluções perante o Judiciário, a partir do instante em que a função pacificadora dos tribunais superiores foi efetivada. Ou seja, não se revela correto aplicar o entendimento dos Tribunais Superiores a alguns e a negá-lo a outros.
Enfim, pode-se concluir dizendo que a segurança jurídica é relevante valor. Porém, pode e deve ser usada a ação rescisória, sempre que a injustiça for manifesta e atrair a incidência de um dos permissivos do art. 485CPC.
* advogado, procurador do Município de Belo Horizonte, Professor de Direito Processual Civil no curso de Direito da FEAD, professor em Cursos de Pós Graduação, Autor dos Livros Recurso Especial (3ª ed) e Recursos em Processo Civil (ed. Del Rey).
Publicado no Jornal Estado de Minas, dia 13 de Junho de 2014, no caderno Direito e Justiça.