Ronaldo Garcia Dias*
Introdução
O tempo atual tem trazido perplexidade aos juristas, e, em especial, aos penalistas, em razão da incapacidade dos demais ramos do Direito agir com eficácia, no sentido de oferecer um mínimo de segurança à sociedade, reservando o Direito Penal para as situações de gravidade extrema.
Embora o Código Penal de 1940 houvesse contemplado grande parte de condutas infracionais praticadas no decorrer de uma licitação ou de uma contratação administrativa[1], a fúria legislativa erigiu capítulo penal próprio na Lei n. 8.666/93, que regulamentou o art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal, instituindo normas para licitações e contratos da Administração Pública, ao argumento de dotar o tema de um tratamento mais amplo e sistematizado facilitando a prevenção e reprovação do ato ilícito.
Assim é que a lei especial consagra, entre os arts. 89 a 98, os tipos penais descritivos das condutas proibidas, trazendo como sujeitos ativos os servidores públicos, na ampla acepção do art. 84 e os terceiros, não integrantes da Administração Pública – normalmente empresários, comerciantes, prestadores de serviços – que concorrer para o crime e dele tiver auferido vantagem.
Todos os crimes descritos na Lei n. 8.666/93 são apenados com detenção e multa, ainda que alguns, pelo volume da pena máxima privativa de liberdade prevista justificassem a reclusão. Outros, por possuírem penas mínimas iguais ou inferiores a 1 ano autorizam a transação penal ou a suspensão condicional do processo nos termos dos arts. 76 e 89 da Lei n. 9.099/95.
Princípios do Procedimento Licitatório.
A licitação destina-se a garantir a observância do principio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatos[2]. Por principio correlato destaca-se o da obrigatoriedade, competitividade e o do sigilo das propostas.
Resta claro que a licitação ficou estabelecida na ordem jurídica como regra fundamental para as obras, serviços, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública quando contratadas com terceiros. A sua dispensa somente se admite por exceção, nos casos indicados no art. 24 da lei.
Das Sanções Administrativas e da Tutela Penal.
Sem prejuízo das responsabilidades na esfera civil e criminal, possível a perda do cargo, emprego, função ou mandato eletivo dos agentes da Administração Pública que praticarem atos visando frustrar os objetivos da licitação. Quanto ao contratado que atrasar injustificadamente na execução do contrato ficará sujeito à multa prevista no instrumento convocatório ou no próprio contrato, podendo ser suspenso e impedido de contratar com a Administração, por até 2 anos, em caso de inexecução total ou parcial do contrato.
Art. 89 – Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade.
Pena – detenção de 3 a 5 anos e multa.
Parágrafo único – Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.
Art. 90 – Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.
Pena – detenção de 2 a 4 anos e multa.
Art. 91 – Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato, cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário.
Pena – detenção de 6 meses a 2 anos e multa.
Art. 92 – Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei.
Pena – detenção de 2 a 4 anos e multa.
Parágrafo único – Incide na mesma pena o contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais.
Art. 93 – Impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório.
Pena – detenção de 6 meses a 2 anos e multa.
Art. 94 – Devassar o sigilo de proposta apresentada em procedimento licitatório, ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo.
Pena – detenção de 2 a 3 anos e multa.
Art. 95 – Afastar ou procurar afastar licitante, por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo.
Pena – detenção de 2 a 4 anos e multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único – Incorre na mesma pena quem se abstém ou desiste de licitar, em razão da vantagem oferecida.
Art. 96 – Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente:
I – elevando arbitrariamente os preços;
II – vendendo como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada;
III – entregando uma mercadoria por outra;
IV – alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida;
V – tornando, por qualquer modo, injustamente, mais onerosa a proposta ou a execução do contrato.
Pena – detenção de 3 a 6 anos e multa.
Art. 97 – Admitir à licitação ou celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo.
Pena – detenção de 6 meses a 2 anos e multa.
Parágrafo único – Incide na mesma pena aquele que, declarado inidôneo, venha a licitar ou a contratar com a Administração.
Art. 98 – Obstar, impedir ou dificultar, injustamente, a inscrição de qualquer interessado nos registros cadastrais ou promover indevidamente a alteração, suspensão ou cancelamento de registro do inscrito.
Pena – detenção de 6 meses a 2 anos e multa.
Art. 99 – A pena de multa cominada nos arts. 89 a 98 desta Lei consiste no pagamento de quantia fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base corresponderá ao valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente.
§ 1º – os índices a que se refere este artigo não poderão ser inferiores a 2% (dois por cento) nem superiores a 5% (cinco por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação.
§ 2º – o produto da arrecadação da multa reverterá, conforme o caso, à Fazenda Federal, Estadual ou Municipal.
A tutela penal representada pelos tipos enunciadores de condutas delitivas dispostos, praticadas por agentes da Administração Pública ou por terceiros, tendo por objeto as licitações e os contratos, podem merecer a atenção da Justiça Estadual ou Federal, conforme o ente estatal atingido.
Quando a União, suas autarquias e empresas públicas forem as interessadas no certame ou no negócio, cabe à Justiça Federal processar e julgar os autores das infrações (art. 109, IV, CF)[3]. Quando se tratar de interesse de Estado, do Distrito Federal, de Município, de suas autarquias, empresas públicas, sociedade de economia mista e fundações, a competência é da Justiça Estadual.
As condutas elencadas nos artigos 91, 93, 97 e 98, são consideradas infrações penais de menor potencial ofensivo, tendo em vista que a pena máxima cominada não é superior a 2 anos, ainda que cumulada com a pena de multa, nos termos da Lei n. 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais.
Assim, antes mesmo da existência de processo criminal, possível na fase preliminar do procedimento sumaríssimo, a proposta de transação penal, feita pelo Ministério Público e consistente na aplicação imediata de multa ou de pena restritiva de direito como a prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana.
Frustrada a transação penal, ainda é possível estancar a ação penal proposta através da suspensão condicional do processo pelo período de 2 a 4 anos e com o cumprimento das obrigações impostas, o juiz declarará extinta a punibilidade.
O principio da especialidade, expressamente previsto no art. 12 do Código Penal, dispõe a prevalência da lei especial sobre a geral, motivo pelo qual, quando a multa possuir o caráter de pena deverá obedecer aos parâmetros do art. 99 da Lei 8.666/93, que prevê percentual sobre a vantagem auferida ou pelo valor do contrato.
Por outro lado, quando ela compuser o acordo nas hipóteses de transação penal será orientada pelas balizas estabelecidas no art. 49 do Código Penal, no mínimo de 10 e, no máximo, de 360 dias multa, sendo que o valor do dias-multa s ser fixado pelo juiz, não poderá ser inferior a um trigésimo do maior salário mínimo mensal vigente ao tempo do fato, nem superior a cinco vezes esse salário.
A postura legislativa de criar regra própria para a pena de multa, não encontrou na redação do art. 99 o seu melhor momento, pela falta de elementos claros e objetivos para a sua fixação, como aqueles encontrados na regra geral do Código Penal.
Assinala Paulo José da Costa Júnior a dificuldade em mensurar os valores da pena de multa na lei especial, até porque em alguns delitos não é possível detectar com exatidão o valor do contrato ou o quantum auferido por aqueles que fraudaram o processo licitatório, até porque, na maioria dos casos, o pagamento é efetuado de forma oculta. Por não haver certeza ao se estipular o valor da sanção pecuniária ela se mostra inviável, já que a certeza possui caráter indispensável no Direito Penal.[4]
Há, adicionalmente, de se considerar que são infrações penais de pequeno ou médio potencial ofensivo. Consequentemente, eventuais condenações dificilmente superariam a 4 anos de pena privativa de liberdade, permitindo a sua substituição por penas restritivas de direitos quando não cometido com violência ou grave ameaça à pessoa e se o réu não for reincidente em crime doloso.
Conforme já decidiu o STJ, julgando o crime previsto no art. 92 da lei de licitação, a existência de circunstâncias judiciais desfavoráveis, que determinam a exasperação da pena privativa de liberdade na sua quantidade e regime de cumprimento, não impede que a pena alternativa se mostre suficiente para a prevenção e repressão do crime, até porque permanece como reserva para assegurar a efetividade do Direito Penal[5].
Desta forma a análise da culpabilidade, dos antecedentes, da conduta social e da personalidade do condenado, previsto no inc. III do art. 44 do Código Penal, não pode ser feita objetivando impedir o beneficio. Afinal, deve o hermeneuta usar, mas não abusar da sua liberdade de interpretar os textos, aconselha Carlos Maximiliano, quando se excede, incorre na censura de Bacon – a de torturar as leis a fim de causar torturas aos homens.[6]
Conclusão
Pela importância que a licitação e o contrato administrativo representam no cenário da Administração Pública, que deve ser guardiã dos princípios maiores da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência na escolha dos prestadores de serviços e fornecedores de bens, a Lei n. 8.666/93, ao se desvincular do vetusto Código Penal, deveria ter tido preocupação maior com a qualidade do conjunto normativo que ofereceu aos seus destinatários.
Com efeito, no caudal da inflação penal legiferante que assola o país, ao argumento falho e demagógico de conter a criminalidade, o tópico destinado à criminalização de condutas na lei de licitações, além de romper com o sistema da proporcionalidade da pena ao seu regime de cumprimento, na medida em que estabeleceu altas penas para a modalidade de detenção, piora no tratamento da pena de multa, que nela perdeu a referência objetiva encontrada no Código Penal, aumentando, perigosamente os poderes do juiz quando de sua fixação.
Bibliografia.
JUSTEN Filho, Marçal, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 8ªed., SP, Dialética, 2001.
NUCCI, Guilherme de Souza, Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 4ª ed., SP, RT, 2009.
COSTA JR, Paulo José, Direito Penal das Licitações, 2ª ed., SP, Saraiva, 2004.
MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª ed., RJ, Forense, 1984.
[1] Justen filho, Marçal, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 8ªed,, SP, Dialética, 2001, p. 630.
[2] Art. 3º da Lei n. 8.666/93. Ainda, art. 37, XXI da Constituição Federal.
[3] Nucci, Guilherme de Souza, fornece como exemplo a hipótese do agente administrativo que determina a compra de produtos, com o fito de intervir no mercado, para regularizar o abastecimento, sem promover licitação, valendo-se do disposto no art. 24, VI, da Lei n. 8.666/93, pode-se questionar, se inverídica a situação, o cometimento da infração penal prevista no art. 89, in, Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 4ª ed., SP, RT, 2009, p. 845.
[4] Costa Júnior, Paulo José. Direito Penal das Licitações, 2ª ed., SP, Saraiva, 2004. p. 72.
[5] HC n. 65.570-SP, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, DJ 22.09.2008.
[6] Maximiliano, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª ed., RJ, Forense, 1984, p. 155.
* Advogado e Professor da FUMEC