Dra. Lucila Carvalho Valladão Nogueira, Advogada, pós-graduada em Direito de Família, integrante do Valladão Sociedade de Advogados.
A busca pela origem genética, há tempos, é considerada um dos pilares do Princípio da Dignidade Humana, sendo inconteste a possibilidade do filho perquirir sobre sua ancestralidade.
A contrario sensu, também evoluiu o pensamento de que o pai registral pode, em caso de dúvida, negar a paternidade, cuja ação terá como objetivo desconstituir o vínculo com o filho, mediante a comprovação de inexistência de conexão biológica.
Sobre esse segundo assunto, o Código Civil traz dois principais dispositivos, art. 1601 e art. 1615, os quais, em um primeiro momento, podem parecer contraditórios. Porém, como será demonstrado, na realidade, não há conflito entre as normas, sendo que a interpretação conjunta de ambos revela a real finalidade do legislador.
Estabelece o art. 1.601 do Código Civil que “cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível.”
A princípio, em interpretação literal, poder-se-ia concluir que a ação que visa desconstituir paternidade advinda de casamento é personalíssima do suposto pai, não tendo legitimidade os seus herdeiros ou outros com justo interesse.
É este, inclusive, o entendimento que prevalece no STJ.
Todavia, propomos, agora, que essa regra sobre a legitimidade para impugnar filiação advinda de casamento seja mitigada, a depender da análise casuística. Ou seja, não mais seria legítimo apenas o suposto pai, mas, também, aqueles com justo interesse.
É que, da leitura de tal dispositivo (art. 1601 CC), observa-se que o legislador trouxe os termos “marido” e “dos filhos nascidos de sua mulher”, do que se pode inferir que a preocupação era, na realidade, a de conferir proteção especial ao instituto da família, de tal forma que seja respeitada a vida privada daquele pai que tem dúvidas quanto à paternidade.
Sim, buscou o nosso legislador limitar a atuação de terceiros interessados naquelas situações em que a paternidade questionada advém do casamento, pressupondo que, em razão do relacionamento do casal e dos sentimentos particulares ali envolvidos, cabe apenas ao pai manifestar, judicialmente, a sua dúvida, até mesmo para evitar situações constrangedoras.
Acontece que nem sempre existe essa família a ser protegida.
Suponhamos que o sujeito, com seus vinte e poucos anos, casa-se no interior com uma jovem, nascendo, durante o relacionamento, um filho (que, na verdade, não era seu). A falência do matrimônio deu-se poucos anos depois, quando o menor ainda tinha meses de vida. O “pai”, então, mudou-se para lugar distante e nunca mais teve contato com esse suposto filho e o ex-cônjuge virago. Décadas passaram e ele casou-se novamente, formando outra família, com a qual conviveu até o falecimento.
Nesse caso narrado, não há dúvidas de que o filho foi concebido durante o casamento, mas, da mesma forma, é inconteste que não há interesse da família a ser tutelado, vez que ela já foi desfeita há muitos anos. Tal situação nos leva a refletir sobre a possibilidade de relativizar a regra enrijecida sobre a legitimidade da ação negatória do art. 1601 CC (filhos advindos do casamento).
Em outras palavras, se o sujeito não tem a paternidade biológica e nem a socioafetiva, não há motivos para que seja o único legitimado a impugnar a veracidade do registro civil. Outros, também com justo interesse, podem fazê-lo.
Tal conclusão pode ser inferida da interpretação do art. 1.615, do CC (segundo o qual “qualquer pessoa, que justo interesse tenha, pode contestar a ação de investigação de paternidade, ou maternidade”) e do art. 1604 CC (que determina que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”).
Esses dispositivos, muito embora comumente aplicados pela jurisprudência aos casos de filhos concebidos fora do casamento, também devem estender-se quando a filiação é fruto do matrimônio, mas não há vínculo de afetividade entre pai e filho (inexiste interesse da família).
A partir da interpretação sistemática e exegética dessas normas, em conjunto com o art. 1601, obtém-se, então, o arcabouço jurídico que permite a mitigação da legitimidade para a ação negatória, mesmo quando a filiação é advinda de casamento.
É preciso, na realidade, que se proceda à análise casuística (fim social da lei – art. 5° da LINDB). Isto é, não se deve estabelecer uma regra geral e indistinta sobre a legitimidade para impugnar a paternidade, condicionando-a à concepção, ou não, durante o casamento. Ao contrário, é necessário apurar, empiricamente, a plausibilidade da legitimidade daqueles que têm “justo interesse” e, ainda, a existência de família a ser protegida.
De mais a mais, adotar entendimento diverso acaba por conferir tratamento anti-isonômico aos filhos, o que é repudiado pela Constituição de 1988 (art. 227 §6°). Ou seja, ao admitir que, indistintamente, apenas os filhos advindos fora do casamento podem ser impugnados por qualquer interessado, trata-se com inferioridade esse tipo de filiação. Supõe-se que deve ter mais cuidado e cautela ao questionar a paternidade somente do filho fruto de relacionamento matrimonial.
Mas, se não mais é permitido discriminar os filhos havidos ou não da relação do casamento, esse entendimento de que a legitimidade para negar a paternidade é condicionada à origem do suposto filho trata, sim, com diferenciação indevida, ferindo a igualdade da filiação.
A par disto, a releitura do art. 1601, em consonância com outras normas legais, além de conferir tratamento igualitário entre os filhos, amplia o rol de legitimação para a negatória da paternidade, afastando o critério petrificado do nascimento durante o casamento e prestigiando a análise casuística, tão utilizada no direito de família.
Dra. Lucila Carvalho Valladão Nogueira, Advogada, pós-graduada em Direito de Família, integrante do Valladão Sociedade de Advogados.